Há quem diga que os filmes de caubóis estão em risco de extinção porque o relativismo moral dos nossos tempos é um habitat adverso para aquelas histórias de heróis e vilões. Pode ser, mas talvez a coisa deva ser posta ao contrário. Se é assim o mundo, não terá de ser assado o contramundo da ficção?
A propósito, vale a pena ver ou rever Stagecoach, o primeiro Ford em que John Wayne é protagonista. Um filme que fala de amor e morte com uma clareza perdida, uma história onde moral e ética aparecem como países distintos; cinema vivo, onde o mais importante passa antes ou depois das palavras. Quero tudo menos fazer uma crítica do filme, mas deixem-me enumerar três momentos eternos.
Primeiro, a cena em que a mulher da má vida (Claire Trevor) se apaixona pelo fora-da-lei justiceiro (John Wayne). O que temos é o ponto de vista dela dentro da carruagem: o chapéu do caubói é um círculo branco. Ele estava de cabeça baixa, mas agora levanta o olhar para ela; tudo dura só um instante, logo o homem volta a baixar a cabeça. O chapéu branco de novo — o mesmo plano e, entanto, tão diferente agora: em cima do corpo do caubói, em vez da cabeça, um disco de luz, uma ideia, uma aura.
O reverso desse plano surge pouco depois, quando a carruagem que dá nome ao filme é atacada pelos índios. Contra o deserto resplandecente, no meio do nada, a carruagem negra puxada por cavalos negros, vista de cima, como uma coisa que corre sem sair do sítio — que imagem mais justa para a morte?
E, no final, os dois palavrões, amor e morte, morte e amor. John Wayne está na povoação, na rua principal, num anunciado duelo contra três cobardes, para vingar o pai e o irmão. Dispara e atira-se para o chão. Corte: Claire Trevor, deixada à espera, grita. Wayne deixara-a junto a casa, na zona da má vida, perto de uma barra de atar cavalos. De susto ou premonição, o grito da mulher?
Belo susto, afinal. Afinal a barra não é para cavalos, lembra antes uma barra de balé, e afinal a mulher não é da má vida, lembra mais uma princesa de conto de fadas. Wayne está vivo, claro, e leva-a numa carruagem nova, descapotável, para um final feliz num rancho algures. Dito assim, já sei, parece burguês e triste e excessivo para os nossos tempos estreititos. Mas vejam, vejam, só vendo: que gestos, que olhares, que silêncios, que tiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário