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segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Nova Iorque 4

Numa das passagens de alfândega, em Heathrow, fui chamado à parte. Uma mulher-polícia pediu-me para abrir a mochila. Era uma senhora rechonchuda, de bochechas rosadas e redondos olhos azuis, que parecia uma personagem de um romance de Barbara Pym a quem tivessem impingido uma farda e um chapéu. 
Enfiou a mão no caos de roupa suja que era o conteúdo da mochila e descobriu o coração. Séria, levantou o olhar para mim à espera de um esclarecimento. Como é óbvio, aquilo era muito suspeito.  
Pensei em contar-lhe a história da escola de cinema, dos exercícios sobre a relação entre imagem e música, da descoberta daquele adereço no vigésimo andar de um arranha-céus no centro de Manhattan, mas pareceu-me complicado demais. Em vez disso, o que me saiu, numa voz sumida, entre soluços, foi: “Please, don’t break my heart...”
Uma pausa longa, um silêncio doido, um vazio que ia dali até à Rua 3 Este em Nova Iorque e voltava; e eu de braços caídos, mordendo o lábio, à espera que a senhora rasgasse a borracha exterior, estraçalhasse a esponja interior e me humilhasse em público — um falso coração exposto para a risota de todo o aeroporto. 
Mas, encarando-me com uma leve, levíssima, ironia azulada, a mulher-polícia largou o coração na roupa suja e fez um gesto para que eu avançasse. “Pode seguir”, disse.
E eu obedeci.

sábado, 10 de setembro de 2011

Nova Iorque 3

Telefonar para Portugal do cimo do Empire State Building.
Sair da sala de montagem da escola de cinema e apanhar o choque da manhã; uma felicidade zonza de cansaço, um quase-desmaio de excesso de luz.
Uma canção começada num dó esquisito, rígido, robótico, que a certa altura se abre para um ré, fá, um mi-menor doce e quente, humano, próximo.
Telefonar para Portugal do cimo do Empire State Building.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Nova Iorque 2

Em 2001, soube do ataque às Torres do World Trade Center pelo telefone. Uma voz amiga descrevia-me as imagens que passavam na televisão e eu fazia perguntas simples, “objetivas”, como que para me defender da notícia, para me acalmar.
Horas mais tarde, estava nos ensaios do que viria a ser a peça Escrever, falar. Éramos dois de pé e dois sentados, na sala branca de uma terra longe. Nos intervalos falávamos do fim do mundo e do teatro diferente que queríamos inventar. Ríamos, fazíamo-nos de fortes, atirávamos disparates uns aos outros. Mas, sobre nós, na sala atravessada pela luz do dia, havia um silêncio novo.
Voltámos a ver as imagens à noite; passavam uma e outra vez e nunca envelheciam.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Nova Iorque 1

Em 1996 eu estava em Nova Iorque a fazer um cursinho de cinema e precisava de um coração para um exercício sobre a relação entre música e imagem. Uma cena de dois, três minutos; a breve história de um homem que, com o frigorífico e os bolsos vazios, acabava por ter de jantar o próprio coração. A música apareceria nesse clímax, quando o homem pegava nos talheres e se lançava a comer, com a contenção possível, o seu “músculo da alma” — uns violinos leves, alegres, que pareciam dizer, com vozes de hiena, “isto é normal, isto é normal, isto é perfeitamente normal”.
Andei o dia todo pelos talhos à procura de um coração que fizesse o serviço, mas eram todos pequenos demais, moles demais, magros demais, corações de coelho, corações de galinha. Os corações de boi estavam esgotados. Desconfio que, mesmo se tivesse conseguido, através de algum tráfico mórbido, um coração humano, não teria ficado satisfeito. Aquilo estava ali à minha frente, era “coisa concreta”, era um “facto”, e no entanto parecia-me sempre falso, triste, morto. Estava tramado, tinha de filmar no dia seguinte e faltava-me o essencial. Passaria a noite em claro, a tentar escavar uma qualquer ideia rápida, “Nova Iorque, fora de horas”...
Até que, no fim do dia, numa loja de adereços descoberta por um colega, lá acabei por arranjar um coração a sério. Um coração realista: de borracha por fora e esponja por dentro.