quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Citação

"Eu e o meu público entendemo-nos muito bem: ele não ouve o que eu digo, e eu não digo o que ele quer ouvir."

Karl Kraus 


("Aforismos" de Karl Kraus, ed. VS.)

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Calçada de Santo André, 79

O Alexandre gosta muito da ópera Nabucco. Um dia, decidiu ir vê-la a Verona. Pegou num dicionário e aprendeu: “Io voglio sapere”. Ligou para a Arena de Verona e disse “Io voglio sapere…”, mas não sabia mais: desligou. Viveu apagado 12 anos, a ouvir a Antena 1. Deitado, cheio de comprimidos, a pensar como é que ia dormir, como é que ia arranjar comprimidos para dormir, e a ouvir a Antena 1. Em miúdo, o João lia “O Poder Mental”. Aquilo expandia-lhe o raciocínio, mas depois veio o “boi”, que era como o pessoal de Angola chamava à erva. O irmão mais velho gostava muito dele e queria atar-lhe as mãos e os pés à cama até que lhe passasse o vício. Tinha orgulho nele, por ele fazer todos os trabalhos. Mas João nunca se aguentou num lugar. Nem com empregos nem com mulheres. Gosta é de tudo o que faça clorofila. Sabe os cheiros das plantas, na aldeia até lhe chamavam ancião. Aos 52 anos, amarrou um cabo ao pescoço, atirou-se pela janela e partiu um pé. O Alexandre fazia rádio-pirata na Rádio Amizade, com o programa Rádio Cartaz. Fugiam à polícia, e entrevistaram o Guilherme de Melo. Trabalhava à noite numa empresa de segurança e dormia de dia. Ganhava dinheiro, mas avariou os sonos. Passou a tomar comprimidos para dormir, e aos 40 anos teve um colapso, meteu-se ainda mais nos drunfos, no crack, na ganza. Passava de autocarro pelo Casal Ventoso, via as pessoas na rua, e pensava: não hei de morrer assim. Nunca se meteu na heroína. O Fernando bebe do pacote porque sente um vazio. O João diz que conhece esse vazio e que o preenche com espaços verdes. Para o Alexandre, a rua foi o melhor que lhe aconteceu: percebeu que pode ser invisível. O Fernando diz que é bom o GAT deixá-lo usar aquela morada. O sistema acha que as pessoas que dormem nas ruas de Lisboa não são de Lisboa e manda-as para os concelhos de origem. O Fernando diz que, se não fosse o GAT, continuava na rua. O Pedro viveu no mato, em Monsanto. Queria escavar um buraco e meter-se lá. Depois arranjou casa, e foi ele que ajudou o João quando este precisou de um lugar para ficar. O Fernando dormiu debaixo das arcadas, com outros. Se havia queixas, a Junta levava para lá uma máquina de lavar a rua, a ver se os enxotavam. O Alexandre trabalhava nos dias úteis e, ao fim de semana, deixava-se ir. O João também, até lhe chamavam o Freak Fim-de-Semana. Mas depois as coisas descontrolam-se. O Pedro diz que acharam cocaína nos túmulos dos egípcios. Que 3 continentes foram ao fundo. Que há uma cidade por baixo do Triângulo das Bermudas. O João diz que é um penedo feito de magnetite. Em miúdo, interessava-se por Da Vinci e fazia máquinas de água a ferver. Aos 14 anos, levava um camião Bedford para os Sete Moinhos. O Pedro anda a trabalhar nas marchas. O Fernando vai fazer uma formação em análise alimentar. O Alexandre gosta muito do Casablanca, principalmente do Bogart. Não gosta tanto da Bergman, acha que ela tem pouca expressão. Oh, diz o João, isso é por ser a preto e branco.



            Jacinto — com Alexandre, João, Fernando, Pedro




(texto escrito na Leitura Furiosa, que é organizada em Lisboa pela Casa da Achada)

quinta-feira, 26 de maio de 2022

segunda-feira, 21 de março de 2022

Ir ao teatro e ajudar

Aqui somos todos Lázaros, de Jacinto Lucas Pires — um espetáculo de Marcos Barbosa

— em cena na Escola do Largo (Largo do Chiado 15, Lisboa)

nos dias 24 e 25 de Março às 19h

O valor do bilhete será de 20€ e reverterá na totalidade para a Paróquia da Igreja da Encarnação, que fará a gestão dessa doação para apoio às famílias ucranianas recém-chegadas a Portugal.

Reservas: producao@escoladolargo.com

terça-feira, 15 de março de 2022

Jorge Silva Melo

Em Deixar a vida, Jorge Silva Melo escreveu que "os actores afirmam no instante". Nesse texto, lá para o fim do livro, falava do impossível "ou" e da dúvida "laboratorial" no trabalho de ator. Atores ou não, podemos aprender tanto a partir de ideias como essa. Jorge Silva Melo deixou ontem a vida, mas deixa-nos muita sabedoria, muita arte, muita matéria de futuro para sempre.




domingo, 9 de janeiro de 2022

A tua sombra ilumina: Lourdes Castro

Contra a distração má, uma distração boa



Quando me lembro da exposição Todos os livros, de Lourdes Castro, que vi na Gulbenkian há uns anos, o que no meu espírito se acende é: cinema. O que haverá nestes livros, e nesta arte, que me atira para aí? Os livros “todos” a que o título da exposição se refere são muitos e bem diferentes. Há um calendário, álbuns, livros de poesia (Rilke, Rimbaud, Herberto, mais), um livro de números, um livro de cozinha, etc. (Aqui estão eles: https://www.youtube.com/watch?v=nnslG3G1L3Q&t=614s.) Livros que são muitos livros, livros que são só uma dobra; livros que se desdobram, demoram, livros livres. Mas o cinema que descubro em Lourdes Castro virá de onde exatamente?
    Da ideia de movimento: um sentido que só nasce em sequência, no passar de uma página para outra, que é como quem diz, de um plano para outro? Ou da ideia de corte e efeito, de planos que se justapõem e sobrepõem? Ou será que o cinema entra nesta arte pela maneira como tudo se cola, isto é, pela montagem?
    E não, isto não é nenhum delírio de escritor. Ao falar de cinema na obra de Lourdes Castro, não estou inventar nada. Noutro livro da artista, Sombras À Volta de Um Centro, João Fernandes escreve: “Acontece com a sombra o mesmo que acontece com o cinema. É sempre de uma projeção que se trata.” E, em Dos Signos e do Resto, Paulo Pires do Vale (curador dessa exposição na Gulbenkian que tanto me tocou) fala também de montagem e lembra que “no Livro de Cozinha, de 1961, há quatro páginas em que Lourdes altera e adapta uma referência ao filme de Godard, A bout de souffle, de 1960”. As palavras do livro falando diretamente com o leitor como Belmondo, no filme, falava diretamente com o espetador.
    Têm a mesma idade, a sombra e a luz. Lourdes Castro e Jean-Luc Godard nasceram no mesmo ano.
    Sim, diz-se das sombras, como das imagens de um filme, que são “projetadas”. Além disso, uma sombra exige sempre de nós um “movimento” (automático, quase inconsciente) em direção à sua referência, ao que lhe dá origem. Uma sombra é sempre, digamos, um “segundo sentido”.
    Também pode ser visto como uma espécie de cinema em tempo real, o teatro de sombras de Lourdes Castro. Um cinema pobre, sem câmara, um cinema da presença e da vida.
    Se calhar, é isso. Se calhar, quando, perante o universo particular de Lourdes Castro, penso “cinema”, estou é a dar um nome a esse mistério: a confusão entre arte e vida que esta obra consegue — sem esforço visível, de um modo espantosamente “próprio” e “natural”, como se viver fosse de facto a nossa arte de cada dia.
    Atentemos, por exemplo, no Grande Herbário de Sombras (um livro de Lourdes Castro que podemos ter em casa, graças à edição da Assírio & Alvim em 2002). São cerca de cem sombras de plantas, fixadas em papel pela artista portuguesa na “Ilha da Madeira, durante o verão de 1972” (cito da página de entrada). Folhear este Grande Herbário de Sombras é ler a mais delicada das histórias. Só o título já é um poema. Uma história feita quase só de tempo, como um sopro que, nas nossas mãos, se vai tornando espírito.
    Sombras roxas, morenas, gris; de boas-noites, pimpinelas, chagas. E, sob tão incontestáveis imagens, parece que se ouve uma voz a segredar: se te distraíres, aí a beleza. Diz Giacometti, em O Estúdio de Alberto Giacometti, de Jean Genet: “Um dia, no quarto, ao olhar uma toalha em cima da cadeira tive vivamente a impressão de que, além de estarem sós, os objetos tinham um peso — melhor, uma ausência de peso — que os impedia de assentar sobre os outros. A toalha estava só, de tal modo só que eu tive a sensação de poder pegar na cadeira sem a toalha se mexer do sítio. Tinha o seu lugar próprio, o seu peso, e até um silêncio próprio. O mundo era leve, leve…” Palavras tão certas. Também Lourdes Castro trabalha a partir da solidão e da leveza dos objetos. É isso, mais o movimento de folhear — que, de certa forma, evoca o misto de cuidado e desprendimento da jardinagem, como se entre as folhas das plantas e as folhas dos livros não houvesse afinal grande diferença — que me leva à ideia de distração. Distração, pois, que felicidade. Andarmos distraídos como em miúdos, a passear sem objetivo e sem fim.
    E agora, caro leitor, permita-me fazer um corte brusco para colar aqui o excerto de um artigo de Madeleine Bunting na New York Review Books, “Desarmar as armas de distração massiva”, que liga os crescentes défices de atenção à utilização das novas tecnologias e nota que, com os telemóveis (leia-se: redes sociais, mensagens, email, mil e uma aplicações), já não há experiências ininterrompíveis: “Há quem defenda que a perda da capacidade de atenção séria é um presságio de catástrofe. A atenção é o elemento-base ‘da intimidade, da sabedoria e do desenvolvimento cultural’, defende Maggie Jackson no seu livro Distracted, onde avisa que ‘à medida que as nossas competências de atenção vão sendo delapidadas, nós vamos caindo numa cultura de desconfiança, superficialismo e convergência desumana entre o homem e a máquina.’ ”
    Seria engraçado se não fosse trágico: na era da distração, já não nos sabemos distrair!
    A arte não tem de ensinar nada, claro. Não é para isso que existe — até porque não existe “para” coisa nenhuma. (Será a arte, afinal, o tal passeio sem objetivo e sem fim?) Mas também não vem nenhum mal ao mundo se aprendermos com ela, não é verdade?
    Talvez o antídoto para esta distração que nos interrompe o essencial da vida não seja mais trabalho ou exercícios de concentração. Talvez seja antes a distração de quem está no mundo como que folheando um Grande Herbário de Sombras. Contra a distração má, uma distração boa. Sim: contra o excesso de telemóveis e tal, proponho a lição da arte de Lourdes Castro. Uma forma de real atenção. Redescobrir o presente, o aqui-e-agora que é estar vivo. Reaprendermos a olhar e a ver. Regressarmos a nós próprios como quem passeia por um jardim numa bela segunda-feira de sol.

 

 

(texto publicado no Ponto SJ a 11 de maio de 2018)