quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Capitalismo de gestão

“Em geral, os ex-comunistas emergem como os mais eficientes gestores do capitalismo já que a sua aversão histórica à burguesia enquanto classe encaixa perfeitamente na tendência do capitalismo atual se tornar um capitalismo de gestão sem burguesia.”


(na London Review of Books)



quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Jornal Local: a freira

Na Calçada da Estrela, uma freira sozinha na paragem. Alta, clássica, e maravilhosamente fora de contexto. Como um recém-nascido no parlamento, uma pistola abandonada na lua, uma árvore no supermercado. Se os elétricos que sobem dizem "Prazeres", o que dirão os que descem? Uma mulher dentro de uma ideia. Jornal Local não consegue deixar de fazer a pergunta: haverá mais justa imagem para a relação entre espírito e mundo que uma freira a preto e branco num elétrico amarelo?

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Arte poética

Leonard Cohen sobre Chuck Berry: "'Roll over Beethoven and tell Tchaikovsky the news' – I'd like to write a line like that."

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Jornal Local: bandeira

No Largo Trindade Coelho, ao final do dia, a bandeira planando em direção ao Chiado. Planando, sim, como uma raia, se as raias planassem, a bela bandeira viva. Azul profundo com ilhas amarelas, e uma tira horizontal, branca e vermelha, pintada por cima. A senhora leva a bandeira à volta do corpo como uma capa de super-mulher, uma saudade orgulhosa, um xaile de sol. Jornal Local estava lá e garante que é verdade: Cabo Verde muda a cidade para a alegria.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Palavrão

Nos EUA, nota Nicolas D. Kristof, a palavra "Europa" tem sido usada como arma de arremesso. Com base, quase sempre, na distorção dos factos e na caricatura mais simplória. Mas o ponto de vista do cronista americano também nos pode ajudar deste lado do mar. Grande parte da culpa da crise europeia — crise política, política, política! — é dos que, por cá, à direita e à esquerda, não se cansaram enquanto não fizeram da Europa um palavrão. Talvez eu seja suspeito para dizer isto, mas a luta também se faz no território da linguagem. E, se a Europa continua presa nesta (cuidado, aspas terríveis) "Europa", bem... estamos feitos.

Dois vivas ao teatro!


A Farsa da Rua W, de Enda Walsh. Tradução de Joana Frazão. Encenação de Jorge Silva Melo. Interpretação de Américo Silva, João Meireles, António Simão, Laurinda Chiungue. Um espetáculo dos Artistas Unidos.



Os Assassinos, de Miguel Castro Caldas. Encenação de Bruno Bravo. Interpretação de Dinis Gomes, Miguel Loureiro, Paulo Pinto, Ricardo Neves-Neves, Susana Sá. Um espetáculo de Círculo de Cultura Teatral - Teatro Experimental do Porto/ Primeiros Sintomas.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Mais merda para o nosso Antunes!

 ©Tuna/TNSJ

O Exactamente Antunes volta ao Teatro Nacional São João! Está em cena de hoje a 12 de fevereiro. A encenação é da Cristina Carvalhal e do Nuno Carinhas. A interpretação é do Jorge Mota, da Lígia Roque, da Joana Carvalho, do Paulo Freixinho, do José Eduardo Silva, da Mané Lopes, do Paulo Moura Lopes e do João Castro, que ponho em último só porque é quem faz de Autor. O desenho de luz é do Nuno Meira. O desenho de som é do Francisco Leal. E o João Henriques orientou o trabalho de voz. O texto é meu, a partir do romance Nome de Guerra de Almada Negreiros.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Os grandes temas metafísicos

"A literatura escolheu o domínio das pequenas relações pessoais. Deixou de saber abordar os grandes temas metafísicos."

"Aquilo que aprendemos de cor, ninguém nos pode tirar. Nem a censura, nem a polícia política, nem o kitsch que nos rodeia."

"Deram-me a honra, na Alemanha, de fazer um discurso perante o governo. Terminei dizendo: 'Senhoras e senhores, todas as estrelas se tornaram amarelas.'"



quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Um poema de Carlito Azevedo

Há também
ao lado da cama
a foto daquele
escritor que disse
na entrevista ter
tido um irmão gêmeo
e quando bebês
chegaram a ser
tão idênticos
que para diferenciá-los
os pais amarravam
fitas coloridas em
seus punhos
um dia foram
esquecidos na água
do banho, da banheira
um deles se afogou
e como as fitas
se tinham desatado
na água ensaboada
nunca se soube qual
dos dois tinha morrido






"se ele
ou eu"




 (do livro "Monodrama" de Carlito Azevedo, ed. Livros Cotovia)

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Jornal Local: o regresso

"Estar longe é estar desperto", dizia uma personagem cómica que conheci, em tempos. Mas estar perto também pode ser espantoso. Chegamos de outro lado e, de repente, tudo é novo outra vez. Regressado de uns dias fora, cheio ainda de longes na cabeça, Jornal Local conseguiu o feito incrível de se perder no Bairro Alto, durante três segundos completos, como o mais totó dos turistas.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Sobre uma fotografia de Ed Ou

É lixo e é Magritte. O olhar de um homem e o olho do ditador. A fotografia de uma fotografia colada à realidade. Retrato de restos e letras; trevas, cacos. Tecnologia de imaginar a cores as zonas cinzentas. Um troféu pode meter medo? Isto que vemos é sobre eles, sobre ele? Sobre eles, sobre nós? Olhamos para lá, recusamos olhar?

domingo, 1 de janeiro de 2012

Espalhar o frio

Nos primeiros três dias a corrida foi difícil, mas a história era simples. Encontrar um ritmo, ver onde pôr os pés, aguentar, aguentar. No final, a visão do diospireiro como um troféu secreto, indizível, só para mim. No quarto dia, depois de ter lido The Runner de Don DeLillo, é que a história mudou. Não que o conto me tivesse perturbado excessivamente. O mundo cá fora é que, de repente, se tornara mais denso, mais misterioso, como se as coisas existissem agora para ser lidas; o mundo mais sábio. (Bonito esse título em português, O Corredor. Aquele que corre mas também o caminho que percorremos numa casa à noite, por exemplo, a tatear paredes à procura de uma luz.) Ao quarto dia, a corrida como um exercício do corpo inteiro, cabeça incluída.
O sino da igreja respondendo ao ladrar dos cães; o cheiro da erva molhada contra o azul limpo do céu; o cantar estúpido dos galos sobre os arbustos sem nome. Na casa branca do lado de lá da estrada, uma velha de negro espera não sei o quê no cimo das escadas, em frente à porta.
Quando dou a segunda volta, vejo-a bater de novo, truz-truz. Nada. A velha recolhe o braço, suspira, “Oh caralho...” Uma velha minhota totalmente derrotada.
O ar mais frio quando passo junto ao muro de pedra; a sombra de uma cabeça deslizando nas alfazemas, a personagem do homem que corre sofrendo sonhos esverdeados, acinzentados, violeta.
A. vem a descer para tratar de algum assunto prático relacionado com couves galegas. “A espalhar o frio?” pergunta-me.
“É isso”, digo, como se fosse preciso responder.
O som demasiado puro, digital, dir-se-ia, do canto dos pássaros; não os vejo, mas ouço-os à conversa de uma árvore para outra, ti-ti-ti-ti, estudando versos de sete, oito, quatro sílabas.
Nos cinco metros da última subida, perco uns cinco minutos de ar, mas acabo por chegar lá cima. Corro até ao tanque e regresso; olho para o relógio, paro. De bofes de fora, não é assim a expressão?, admiro o diospireiro na leira de baixo. A árvore nua carregada de bolas pequenas, pesadas; bolas de bilhar pintadas de cor de laranja; um símbolo grandioso contra todo o fim. Quando olho para a casa branca, a velha desapareceu.
Terá regressado pela berma da estrada, de mãos a abanar? Uma figura de preto contornando o terreno das tangerineiras, olhando sem interesse o cão dos vizinhos, passando demasiado devagar pelo cemitério. Não, não, que eu já li o The Runner. O que acontece é totalmente outra coisa. A esta hora a senhora senta-se na cozinha a beber uma sopa quente, pensando em batatas ou na iluminação que este ano o padre escolheu para a igreja ou no preço de uma viagem a França ou na riqueza que é ainda ter dentes para trincar uma batata que não se desfez ao lume, um bocado de cenoura mal cozida, o caule da couve, distraída da morte.