Dá para espreitar aqui.
terça-feira, 11 de junho de 2024
quinta-feira, 23 de maio de 2024
segunda-feira, 19 de junho de 2023
Para ouvir
Estas palavras vão com a Maria, no Cunene, a caminho da água. Nunca foi à escola, a mãe dizia-lhe para tomar conta dos irmãos. Caminha, com uma criança às costas e uma tina de água equilibrada na cabeça. Às vezes, tem de parar para beber.
Quando foi a revolução em Portugal, havia muitos brancos a vir para a metrópole (dizia-se assim, “metrópole”), e ela veio também. Era nova, tinha a ideia de que aqui as ruas eram brilhantes. Imaginava-se a andar em cima de um espelho. Afinal, ficou num hotel em frente à estação. Trabalhou nas limpezas, e acordava às cinco da manhã, mas era melhor trabalhar fora do que em casa. Fora, pagam; em casa, como não temos a chefa a ver do pó em cima das coisas, vamos adiando.
A Daniela é o contrário. Está em casa e não pára. A família diz-lhe que não sabe descansar. Um dia, foi a pé do Alto do Lumiar até Santo António dos Cavaleiros. Esta frase segue atrás dela, tenta apanhá-la. Parece uma menina, mas já tem uma filha com treze anos. Aprendeu a ler em Angola, só que foi esquecendo e agora está a recomeçar. Tenta ler os letreiros no autocarro. Quer trabalhar como doméstica ou num restaurante; precisa de contrato para ter o papel da residência. A filha já tem, ela não.
O Gil chega, apresenta-se e, de repente: “A D. Maria vivia onde?” Os dois olham-se, silêncio. Descobrem que eram vizinhos há vinte e tal anos, na Quinta Grande. “Eu vivia na Rua da Esperança!”, diz o Gil. “O meu pai era o Picasso.” Pausa. “Era o Picasso porque era um artista!” E depois explica o erro da reabilitação: destruíram os bairros e separaram as pessoas. Nos prédios, as pessoas morrem e ninguém sabe. A D. Maria, que agora já é a Tia Maria, diz que o mundo está pior. A Daniela confirma: de pernas para o ar. O Gil diz que, com os prédios, perderam-se os “tios”, foi-se a comunidade.
Veio de Angola com os pais, tinha dois anos. Depois emigraram para Inglaterra. Aprenderam inglês, mas nunca perderam o português (“manter a base e acrescentar”, dizia o pai). E regressaram a Lisboa. O Gil estudou sociologia, life-coaching, desporto. Fez atendimento em lojas de luxo, mas não quer mais vender coisas. Quer ajudar os outros. A mulher não o deixava fazer massagens, dizia que ele não sabia; então, ele tirou um curso de massagens à séria. Gosta de saber para fazer, não é de teorias. Mas é um especialista em éles: Luanda, Londres, Lisboa, Lumiar.
A Daniela faz uma bela propaganda aos trabalhos de costura que cria com a Tia Maria e outras colegas, ali ao lado, no Espaço Mundo. Vão mostrar essas peças na feira do bairro.
A Tia Maria já voltou a Angola duas ou três vezes. Não tem filhos, mas tem muita família. “São muitos, parecem ratinhos, sempre mais”, diz ela, a sorrir. “Obrigada, não há televisão…”
Durante anos, o Gil ia com os amigos a pé por aqueles lugares todos até a uma sala emprestada, no ISEG da Alameda. Durante o caminho, o tempo passava e os buracos iam-se tornando prédios. Este texto vai com eles, dentro e fora do tempo, despassarado, só a ouvir.
Jacinto Lucas Pires, com Maria Kama, Daniela Deía e Gil Val
(no Grupo de Alfabetização da ARAL)
(texto escrito na "Leitura Furiosa", que, em Lisboa, é organizado pela Casa da Achada)
quinta-feira, 15 de junho de 2023
quarta-feira, 1 de junho de 2022
Calçada de Santo André, 79
O Alexandre gosta muito da ópera Nabucco. Um dia, decidiu ir vê-la a Verona. Pegou num dicionário e aprendeu: “Io voglio sapere”. Ligou para a Arena de Verona e disse “Io voglio sapere…”, mas não sabia mais: desligou. Viveu apagado 12 anos, a ouvir a Antena 1. Deitado, cheio de comprimidos, a pensar como é que ia dormir, como é que ia arranjar comprimidos para dormir, e a ouvir a Antena 1. Em miúdo, o João lia “O Poder Mental”. Aquilo expandia-lhe o raciocínio, mas depois veio o “boi”, que era como o pessoal de Angola chamava à erva. O irmão mais velho gostava muito dele e queria atar-lhe as mãos e os pés à cama até que lhe passasse o vício. Tinha orgulho nele, por ele fazer todos os trabalhos. Mas João nunca se aguentou num lugar. Nem com empregos nem com mulheres. Gosta é de tudo o que faça clorofila. Sabe os cheiros das plantas, na aldeia até lhe chamavam ancião. Aos 52 anos, amarrou um cabo ao pescoço, atirou-se pela janela e partiu um pé. O Alexandre fazia rádio-pirata na Rádio Amizade, com o programa Rádio Cartaz. Fugiam à polícia, e entrevistaram o Guilherme de Melo. Trabalhava à noite numa empresa de segurança e dormia de dia. Ganhava dinheiro, mas avariou os sonos. Passou a tomar comprimidos para dormir, e aos 40 anos teve um colapso, meteu-se ainda mais nos drunfos, no crack, na ganza. Passava de autocarro pelo Casal Ventoso, via as pessoas na rua, e pensava: não hei de morrer assim. Nunca se meteu na heroína. O Fernando bebe do pacote porque sente um vazio. O João diz que conhece esse vazio e que o preenche com espaços verdes. Para o Alexandre, a rua foi o melhor que lhe aconteceu: percebeu que pode ser invisível. O Fernando diz que é bom o GAT deixá-lo usar aquela morada. O sistema acha que as pessoas que dormem nas ruas de Lisboa não são de Lisboa e manda-as para os concelhos de origem. O Fernando diz que, se não fosse o GAT, continuava na rua. O Pedro viveu no mato, em Monsanto. Queria escavar um buraco e meter-se lá. Depois arranjou casa, e foi ele que ajudou o João quando este precisou de um lugar para ficar. O Fernando dormiu debaixo das arcadas, com outros. Se havia queixas, a Junta levava para lá uma máquina de lavar a rua, a ver se os enxotavam. O Alexandre trabalhava nos dias úteis e, ao fim de semana, deixava-se ir. O João também, até lhe chamavam o Freak Fim-de-Semana. Mas depois as coisas descontrolam-se. O Pedro diz que acharam cocaína nos túmulos dos egípcios. Que 3 continentes foram ao fundo. Que há uma cidade por baixo do Triângulo das Bermudas. O João diz que é um penedo feito de magnetite. Em miúdo, interessava-se por Da Vinci e fazia máquinas de água a ferver. Aos 14 anos, levava um camião Bedford para os Sete Moinhos. O Pedro anda a trabalhar nas marchas. O Fernando vai fazer uma formação em análise alimentar. O Alexandre gosta muito do Casablanca, principalmente do Bogart. Não gosta tanto da Bergman, acha que ela tem pouca expressão. Oh, diz o João, isso é por ser a preto e branco.
Jacinto — com Alexandre, João, Fernando, Pedro
(texto escrito na Leitura Furiosa, que é organizada em Lisboa pela Casa da Achada)