quarta-feira, 30 de março de 2011

Portugal a doer

Os tempos andam tramados, tramadíssimos, tramadões. A bronca do PEC IV embrulhou ainda mais a crise, a atitude do Presidente como mero “guarda da vírgula” do regime não ajuda nada, e Portugal parece cada vez mais na beira da falésia, mal equilibrado contra os ventos de fora e de dentro, a tremelicar. Cá em baixo, na praia, de jornais na mão, nós vamos assistindo a isto, suspensos, a ver se, como na anedota, damos ou não o famoso “passo em frente”. Só que, desta vez, a anedota é imensa e trágica - e é sobre nós. Todos nós, pois.
É natural que, neste ambiente, a selecção jogue em modo “bom dia, tristeza”, e um empate a uma bola com o Chile surja como coisa quase boa. Como é óbvio, não é, não pode ser. É que o futuro está aí mesmo a chegar, caros amigos. E pôr todas as fichas na simpatia dos nórdicos é capaz de não ser grande solução...
Tenho cá para mim que o que definiu o amigável deste fim-de-semana não foi tanto o um-zero madrugador, aquela cabeçada esperta de Varela, nem a ausência de Cristiano, nem o poético pato de Patrício no golo de Matías Fernandez. O que marcou aquele empate triste de sábado foi o estado depressivo da nossa alma nacional. Sai dessa, Portugal! Para enfrentar mercados, erros, más fortunas, partidas amigáveis ou “mata-matas”, há uma só via: alegria, alegria. Se entramos em campo com medos à Merkel, seremos atropelados e não haverá “bolas paradas” que nos salvem. Não, tentemos uma abordagem mais lulista-da-silva. Temos de ser da esperança, fazer por isso, pensar alto e positivo, querer sempre mais, mudar melhor - pode ser?
A resposta no jogo de ontem com a Finlândia foi um típico “nim”. Sabemos jogar ao ataque e gostamos de jogar bonito, mas, na hora agá, há tanta suavidade, tanto pé mole, meu Deus. Uma beleza matemática, a jogada do primeiro golo: grande ideia de Martins, um toque simpático de Almeida, e depois, uou!, uma bela trivela de Quaresma a presentear Rúben Micael com a honra de cortar a fita. O caloiro madeirense ainda viria a marcar mais um, graças a um passe “very-very” de Nani. Mas, no entretanto, tanta bola despassarada, tanta complicaçãozinha no momento de assinar a decisão... Os finlandeses abriam alas e nós chutávamos para o lado, ou nem isso. Não: se é para chegarmos ao futuro, temos de levar a alegria até ao fim. Como é que se diz em futebolês, “não ter medo de ser feliz”?
   

(no JN de hoje)

quarta-feira, 23 de março de 2011

Alegria na gaveta

Um dos maiores defeitos do mister Jorge Jesus é também uma das suas maiores qualidades: a casmurrice. Ou chamem-lhe como quiserem - caturrice, teima, finca-pé, cabeça-dura. O facto é que, sem essa teimosia ensimesmada, Jesus não era ninguém. Só ela explica, por exemplo, que o treinador continue a insistir em Cardozo para carrasco dos nossos penáltis. Quantos já falhou o paraguaio? Mesmo quando marca, como segunda-feira, contra o Paços, ainda o jogo ia no prefácio, dá ideia que é menos um conseguimento próprio que um fracasso do guarda-redes, um capricho do vento, uma magia arquitectónica. Não têm essa impressão? Não sei, talvez seja uma coisa minha. Talvez seja só aquele estilo amedrontado de pôr a chuteira na bola que me encanita especialmente... Mas isto para dizer que a casmurrice também tem um lado bom. Veja-se o caso de Nuno Gomes. A insistência do mister em deixá-lo no banco, oferecendo-lhe não mais que umas migalhinhas de um ou outro final de jogo, salvou o jogador português. Não há pior para um avançado do que a doença da previsibilidade e Nuno Gomes andou lá muito perto, muito tempo. O estatuto de suplente-talismã que Jesus lhe ofereceu esta época deu-lhe um novo foco. Salvou-o. Bem-vindo, Nuno!
Mas... estão a ver isto? O que é isto, caros amigos? Um Picasso? Um James Joyce? O Super-Bacana? Não: isto é Osvaldo Nicolás Fabián Gaitán. Um super-craque da bola. Mas comecemos pelo começo. É uma jogada digna das antologias mais escolhidinhas: a bola rolando do pé uruguaio para o pé paraguaio (na banda sonora, Caetano cantando “soy loco por ti, América/ soy loco por ti de amores”...); Cardozo alegra-se por um segundo e, com uma espécie de sorriso, toca para Gaitán; e o miúdo Nico, de repente, plim. Como é que ele fez aquilo? Plim, acendendo a lâmpada das ideias eternas. 
Olha para a baliza, livre de todas as complicações, livre de toda a palha do dia-a-dia - como um sábio ou um poeta, imaginando a verdade. Depois espera, deixa passar um tempo nem longo nem curto, o tempo justo de uma respiração, e faz o gesto. Cumpre a grande lição dos ensaios de dança: não penses. Isto é, pensa mas pensa com o corpo. Plim, e a bola rompendo o ar espesso de Paços de Ferreira, a “capital do móvel”, planando por cima do guarda-redes que voa, esticado, para trás, e descendo para a baliza. Nunca tinha visto nada assim: uma onda arrumando-se na gaveta.

(no JN de hoje)

segunda-feira, 21 de março de 2011

O cúmulo da humilhação

Assaltarem-te o carro e levarem tudo menos o exemplar do livrinho que tu escreveste com tanto amor e carinho.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Matematicamente Europa

Até acho que Jesus fez bem em lançar a segunda equipa no jogo com o Portimonense. Estes jogos contra o “matematicamente possível” têm tudo para ser uma bela chatice - assim, ao menos, adianta-se algum trabalho para a frente. Mas parece-me que o resultado da experiência diz muito do que faltou ao Glorioso deste ano no campeonato. Mesmo dando de barato que os suplentes são para entrar um, dois, três de cada vez (e não aos molhos de dez ou onze), um Benfica B tem a obrigação de dominar os clubes do fim da tabela. Pois é, um dos grandes equívocos deste Benfica está sentado no banco. Não, não estou a falar de Luís Filipe. Digo “em geral”. Se virmos bem, temos grandes craques titulares, Aimar, Saviola, Luisão, Coentrão, Gaitán, e depois o quê? Um banco com “muito futuro”... Para uma equipa que luta em diferentes batalhas e sempre para a vitória, isto não basta. Não, é essencial ter um pouco mais de “presente”. Chuteiras que não duvidem na hora agá. 
E a hora é esta, já amanhã - a nossa hora europeia. Na primeira mão, na Catedral, os nossos amigos franceses entraram a marcar. Um golo aos cinco minutos, quando mentalmente ainda estávamos no balneário a decidir se usávamos as caneleiras de cerimónia ou as de todos os dias. Uma água fria daquelas de pôr chuva nos corações mais sensíveis. Mas bem lhes mostrámos de que massa é que somos feitos. 
Carlos Martins inventa uma bola vivíssima por cima dos cidadãos de Paris; sem parar, Maxi recebe com o peito e chuta para o golo do recomeço. Já lá diz Carlos Paião, “há zero a zero, há cem a cem”. De repente, era outra vez possível ganhar e vencer. E sim: acabado de entrar em campo, Aimar faz uma finta só com os olhos e toca a redondinha para Jara. O miúdo Franco Daniel puxa a bola para o lado, espera até ao limite e, cercado por três PSG’s, remata. Espantado com o que o seu pé acabou de imaginar, até cai na relva. E é já sentado que assiste ao milagre. Golo, ganhámos, reviravolta de alegria. Que amanhã, em Paris, saibamos ser assim - inteligentes na alma e espertos no corpo.
A minha táctica? Jogar com o futuro mais perto do presente, em pressão alta, cheios dessa confiança que o passado nos passa. Sob os felizes augúrios de tantos campeões eternos - e, para dar sorte, deixem-me dizer onze nomes: Bento, Mozer, Humberto Coelho, Veloso, Pietra, Shéu, Coluna, Chalana, Simões, Mantorras, Eusébio -, vamos golear na Europa.

(no JN de hoje)

quinta-feira, 10 de março de 2011

Vamos lá ganhar a Europa

Tinha de acontecer, mais tarde ou mais cedo. Por mais optimistas que nos esforçássemos por ser; por mais que, antes de cada partida, arejássemos os corações com boa ilusão e saudades do futuro; por mais que as inspirações dos craques benfiquistas nos pusessem pontos de exclamação na alma; por mais que o futebol-maravilha nos fizesse imaginar impossíveis - sabíamos que tinha de acontecer, mais tarde ou mais cedo. Não dá para “crer” e “querer” tanto tempo contra números de pedra, e a diferença pontual para o primeiro lugar parecia tão pesadona como a grande pedra do estádio do Braga. Sim, no fundo, sabíamos que tinha de acontecer. E, no entanto, caros amigos, como é triste. 
Alguns dirão que a nossa entrada domingueira anunciou logo o fracasso. De facto, notou-se demais a falta de Pablo Aimar, glorioso maestro, arquitecto e filósofo da equipa. No belo estádio que Souto Moura compôs em parceria com a Paisagem, jogávamos pelo manual, sem ousadia, sem rasgo. O que, em futebolês, se diz “jogar para o calendário”. Também faltava Salvio, o mais original dos extremos, um repentista ligado à terra. E, em geral, mexíamo-nos sem estamina, sem espírito. Carregávamos um cansaço sentimental - não é impunemente que se ganha jogos seguidos nos últimos segundos, em estilo de drama épico -, as pernas desconectadas do coração. Outros dirão que o que nos tramou foi aquela cartolina vermelha que atirou García, o nosso espanhol da táctica, para o arquitectónico balneário. Eu cá acho que a nossa derrota começou no golo de Saviola. 
 Não me interpretem mal. Foi um golo felicíssimo: uma alegria, como pusemos aquela “bola parada” em movimento para dentro da baliza bracarense. O chuto d’El Conejo é mais difícil do que parece e merece mais do que o rótulo técnico de “recarga”. Foi um tiraço com a bola tropeçada no ar, um chuto na única fracção de segundo possível, pelo único espacinho livre. Um óptimo golo, sim. Mas, a partir daí, aburguesámos. Caímos na tentação do “futebol confortável” e pagámos as consequências. 
Que triste, pois - mas olhemos para a frente. De alguma forma, esta derrota em Braga até nos alivia e liberta. Agora podemos dar-nos ao luxo de não ser nem optimistas nem pessimistas. Digamos com Almada Negreiros que agora não há nenhum mal-entendido entre nós e a vida, e vamos lá ganhar a Liga Europa. Com futebol-alegria, sim, estádios de pé, corações ao alto.

(no JN de ontem)

quarta-feira, 2 de março de 2011

Coluna e o bom espírito


Este sábado, Coluna, esse nome maiúsculo do futebol português, do futebol mundial - e reza a lenda que, já nos dias gloriosos do amor à camisola, Eusébio o tratava com um respeitinho à parte, “Senhor Coluna, posso marcar o penálti?” -, recebeu a águia de ouro. De corações levantados, a nação benfiquista aplaudiu com a alma toda; um aplauso espontâneo, genuíno, fortíssimo. 
No domingo, esse espírito deu-nos a vitória contra o Marítimo. Uma vitória épica e lírica, dramática e mais que merecida, um conseguimento histórico todo apontado ao futuro.
É essa a grande notícia, caros amigos. Podemos não ganhar o campeonato este ano, mas já ganhámos este espírito de nunca-descrer, de vamos-vencer-e-vamos - e isso vale os mil e um campeonatos de amanhã. O treinador até pode errar (como errou o treinador do Benfica ao tirar Aimar, partindo a equipa, retirando-lhe inteligência e visão; como errou Jorge Jesus ao perder a cabeça nos protestos do fim do jogo...), mas o espírito pode mais. A má sorte pode enervar (como enervou no domingo: bolas ao poste, bolas por um triz, um golo que afinal não valeu...), mas este espírito vale muito mais. 
Um estoiro de adrenalina, aquele golo de Coentrão com o pé menos famoso. No último dos últimos segundinhos dos descontos. Para aquilo nem há palavras de dicionário: douraltidência, imensartismo, inesquecidade. Que tiraço - a matéria de que se fazem os sonhos e as histórias mais verdadeiras. 
Antes, caíra um frio de proporções nórdicas na Catedral: Djalma (que nome maravilhoso) salta na nossa área e, com um simples virar de cabeça, muda em golo um pontapé de canto. Cinquenta e cinco mil pessoas em silêncio na Luz, um suspiro de milhões por esse Mundo. O relógio apertava, agigantava-se o problema. Mas baixámos os braços, entristecemos, desanimámos? Nem sombra de nada disso, caros amigos. Fomos logo lá para a frente fazer pela vida - de novo, sempre.
De costas para a baliza, Cardozo, o nosso paraguaio melancólico, junta quatro ou cinco madeirenses à sua volta e solta a bola para a esquerda; Fábio “Super-craque” Coentrão lança o mais venenoso dos esféricos, um passe diagonal, rasteiro, a cruzar a área, baralhando defesas e guarda-redes; e, do outro lado, como que aterrando de uma viagem transatlântica, aparece Salvio, a tocar para dentro. Com este espírito, é para a glória, não é, senhor Coluna, só pode ser para a glória, não é?

(no JN de hoje)