Em 1996 eu estava em Nova Iorque a fazer um cursinho de cinema e precisava de um coração para um exercício sobre a relação entre música e imagem. Uma cena de dois, três minutos; a breve história de um homem que, com o frigorífico e os bolsos vazios, acabava por ter de jantar o próprio coração. A música apareceria nesse clímax, quando o homem pegava nos talheres e se lançava a comer, com a contenção possível, o seu “músculo da alma” — uns violinos leves, alegres, que pareciam dizer, com vozes de hiena, “isto é normal, isto é normal, isto é perfeitamente normal”.
Andei o dia todo pelos talhos à procura de um coração que fizesse o serviço, mas eram todos pequenos demais, moles demais, magros demais, corações de coelho, corações de galinha. Os corações de boi estavam esgotados. Desconfio que, mesmo se tivesse conseguido, através de algum tráfico mórbido, um coração humano, não teria ficado satisfeito. Aquilo estava ali à minha frente, era “coisa concreta”, era um “facto”, e no entanto parecia-me sempre falso, triste, morto. Estava tramado, tinha de filmar no dia seguinte e faltava-me o essencial. Passaria a noite em claro, a tentar escavar uma qualquer ideia rápida, “Nova Iorque, fora de horas”...
Andei o dia todo pelos talhos à procura de um coração que fizesse o serviço, mas eram todos pequenos demais, moles demais, magros demais, corações de coelho, corações de galinha. Os corações de boi estavam esgotados. Desconfio que, mesmo se tivesse conseguido, através de algum tráfico mórbido, um coração humano, não teria ficado satisfeito. Aquilo estava ali à minha frente, era “coisa concreta”, era um “facto”, e no entanto parecia-me sempre falso, triste, morto. Estava tramado, tinha de filmar no dia seguinte e faltava-me o essencial. Passaria a noite em claro, a tentar escavar uma qualquer ideia rápida, “Nova Iorque, fora de horas”...
Até que, no fim do dia, numa loja de adereços descoberta por um colega, lá acabei por arranjar um coração a sério. Um coração realista: de borracha por fora e esponja por dentro.
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