segunda-feira, 14 de maio de 2012

Sou o gato que Alice

Sou o gato que Alice tem em casa, num cesto de maçãs sem maçãs. Um gato falso, pois, mas respiro de verdade. E o que aqui venho dizer, caros ouvintes, é que, miau, a minha dona já viu mais que vocês todos. Uma vida tão viajada que até me confundo a contar. Vacas preguiçosas no Círculo Polar Ártico, a hora de ponta na selva de Moçambique, civilizações antiquíssimas nuns metros quadrados em Alverca. A minha dona é viajada, sim, mas também é mulher. E como ela própria diz, “Deus fez o homem e descansou, fez a mulher e nunca mais descansou”. Ainda agora eu queria dormir e ela liga a televisão, de modos que se vos atiro estas palavras, caros ouvintes, é também a ver se consigo furar tanto anúncio, tanto ruído, tanta, perdoem-me, caca. Sim, caca. Respiro a sério e também produzo um ressonar de qualidade, mas não faço caca. Enfim. Além de dormir, gosto de sair por este Recolhimento de São Cristóvão, que é um lugar antigo por fora e muitissimamente novo por dentro. Um condomínio aberto, uma casa de casas, um labirinto até ao azul. Quando todas as mulheres dormem, brinco por aí como brinquedo que sou. (Digo “mulheres” mas sem mal. É como ensina Maria Aldina, “Ai não me tratem por ‘Dona’ nem ‘Senhora’. ‘Senhora’ é a que está no céu!”) No armário a que as pessoas daqui chamam “a capela”, finjo que sou um pássaro no Marvão de Maria José planando sobre alturas e funduras, toda aquela saudade de pedra. Finjo que sou um leão moçambicano escalando as pirâmides maias que Alice fotografou com os olhos. Finjo que sou um humano a atravessar as índias da memória de Cecília e, num instante, como quem muda de fuso horário, passo do português de Goa ao inglês do resto do mundo, “gerundiamently”, “etcétera e what”. Outras vezes ponho-me na marquesa da enfermaria, de patas para o ar, a brincar à doença dos nomes. Lourdes tem muito orgulho em ser Lourdes com “o-u”, Delfina foi sempre Delfina porque não há diminutivo para um nome assim, e Francisca não gostava nada quando, em miúda, lhe chamavam Chica, mas eu, miau, nem nome tenho, não tenho um nome, e gostava tanto. Que nome me dariam, queridos ouvintes, excelentes pessoas? Talvez pudesse ser Fellini, o que é que acham? É que às vezes, à noite, na varanda sobre Lisboa, entre as estrelas e os planetas mas um bocado ainda maior, vejo um piano fechado. Será grave? Maria do Carmo explica que está muito surda e que, um dia destes, põe mas é um aparelho nos ouvidos. Maria Aldina diz que, desde que lhe tiraram as cataratas, vê muito colorido mas também muita ruga. Eu vejo um piano sem cauda, moreno e manchado. Juro, é verdade. Sou um gato falso mas não minto. Um piano fechado no céu aberto a tocar canções iguais a mim. 


Jacinto Lucas Pires — com Alice Silva Gaveta, Cecília de Sousa, Maria José Carrilho, Francisca Pinheiro, Delfina Gonçalves Branco, Maria Aldina de Sousa, Lourdes Victorino e Maria do Carmo Santos (da Leitura Furiosa destes últimos dias)

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