quinta-feira, 23 de março de 2023

Não teria feito mal ao debate parlamentar de ontem se alguém tivesse lido em voz alta um poema de "O problema da habitação — alguns aspectos", de Ruy Belo

 I

QUASI FLOS


A morte é a verdade e a verdade é a morte


Tão contente de vento, ó folha que nomeio

como quem à passagem te colhesse,

palavra de que tu, ó árvore, dispões para vir até mim

do alto da tua inatingível condição


De muito longe vinda, inviável lembrança

indecisa nas mãos ou consentida

por alguma impossível infância

E a alegria é uma casa recém-construída


Face melhor de todos nós, ó folha

dos álamos nocturnos e antigos visitados pelo vento,

no calmo outono, o dos primeiros frios, sais

do ângulo dos olhos, acolhes-te ao poema

como no alto mês de maio a flor imóvel do jacarandá


Não há outro lugar para habitar

além dessa, talvez nem essa, época do ano

e uma casa é a coisa mais séria da vida




Ruy Belo

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