sábado, 9 de novembro de 2013

(Em português, é outra coisa, não?)

EUROPA, BREVE INTRODUÇÃO

Era uma vez, há milhões de anos, pessoas que iam ao cinema. Viam um comboio e gritavam, porque acreditavam que o comboio ia sair do ecrã e matá-las. Viam homens e mulheres e gritavam, porque acreditavam que eram fantasmas e não homens e mulheres. Viam um grande plano de um rosto sem expressão e depois um grande plano de um pedaço de pão e gritavam, porque acreditavam que o ator tinha fome.
Nos melhores locais da cidade, em cima de grandes rochas loucas, havia umas salas de cinema feitas assim só de colunas e sol; umas máquinas superdelicadas que projetavam palavras de fogo contra os céus antigos, os céus azuis-opacos que existiam antes de 0000, o ano em que o homem de Nazaré foi crucificado pelos nazis. Nesse tempo, as pessoas iam ao cinema como nós hoje vamos para a terra quando morremos. Só que faziam isso quotidianamente. Bem, sim. Eram assim as coisas. A vida. Viam um touro — lá em cima, no ecrã, o grande animal misterioso — e gritavam, porque acreditavam que era um deus. Tinham toda a razão.
Claro que era tudo a preto e branco. Isto foi durante a fase de Cinema Natural do mundo. O touro era branco na noite, branco incandescente, como um copo de leite visto pelos olhos de Hitchcock. É o mito, e, sabem o slogan não?, o mito é a verdade vinte e quatro vezes por segundo. E um belo dia, era domingo, o touro viu uma rapariga bonita na plateia. Ah caramba, que cara mais atenta a dela. Ah que espanto, o modo como ela mascava a pastilha.
Na realidade cinemascope do mundo, o touro raptou, violou ou amou a rapariga. Aqui há diferentes versões. Três, pelo menos. Todos sabemos o nome da rapariga, claro, porque na verdade é o nosso nome. Apesar de termos tendência para o esquecer. Apesar de não o usarmos a maior parte das vezes, por causa da culpa ou lá o que é. Mas, sabem, um nome é um nome. O que Pessoa disse sobre o mito, é isso um nome: o nada que é tudo. Europa, Europe, Europe.
O pai da rapariga era um homem poderoso, um milionário da lista da Forbes, mas não havia nada que ele pudesse fazer para trazer a filha de volta. Para o bem e para o mal, ela agora estava no futuro. A cavalgar deus sobre as ondas, sob a lua cheia, uma surfista nua, de cara aberta aberta. Quando chegou a Creta tornou-se rainha e deu à luz três filhos: o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e o Conselho Europeu. Receio que isto seja apenas uma breve introdução à coisa propriamente dita. A História sairá na próxima segunda-feira. Não percam. Vocês têm uma palavra a dizer sobre a forma como isto se desenrolará. Conseguirão os três europeus salvar a mãe, o amor de deus — o nosso nome — da austeridade, da desigualdade, da tecnocracia?




(excerto do texto "História dos Pormenores" que escrevi para o espetáculo "Bull's Eye" de Philippe Vincent — a ante-estreia é hoje em Montemor-o-Novo, a estreia será uns dias depois em Marselha)

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