quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A Febre, de Wallace Shawn


...está em Lisboa, no São Luiz, até amanhã. A interpretação é de João Reis, a encenação de Marcos Barbosa, a cenografia de F. Ribeiro. Eu sou suspeito, bem sei, porque é minha a culpa da tradução, mas não estou aqui para enganar ninguém: é essencial ir lá ao Chiado, às 21h, ver este solo de juntar pessoas sob pontos de interrogação. Ainda mais nestes tempos que nos calharam na rifa...
Há um ano, escrevi um texto sobre a peça para o jornal do TNSJ: 


Punho fechado

Eis o que falta dizer sobre A Febre: isto é política. É teatro, sim, e é política. É sobre a culpa, pois, a culpa individual de um anti-herói que se vê em festas a falar com mulheres de roupas coloridas e a beber vinho e a comer salmão e a fazer conversa sobre as montanhas da Tailândia ou aquela obra de Beethoven, e é política. São palavras, é verdade, só palavras, já se sabe, as habituais só-palavras dos escritores e dos actores e, em geral, deste nosso mundo em que se fala tanto, em que se fala demais, este nosso pequeno mundo onde tantas vezes parece que falar-escrever é apenas a forma mais esperta de, porra, de não fazer – mas, portanto, palavras, sim, e política: palavras-acções que não se limitam a “pensar” o tempo em que vivemos, que não se satisfazem com o pôr-em-causa de alguns dos “indiscutíveis” fundamentos das nossas sociedades: palavras de nos desequilibrar, a cada um de nós, intimamente, desassombradamente e, ah pois, oh sim, violentamente: em direcção ao mundo. 
“Claro, algumas vezes tu pensas no sofrimento dos pobres. – Deitado na cama, sentes uma compaixão, sussurras para a almofada algumas palavras de esperança: Em breve todos vocês terão remédios para os vossos filhos, em breve um lar. (...) Mas durante este compasso de espera, espera, esta interminável espera pela mudança gradual, eles vêm um a um bater à tua porta e lamentam-se muito e imploram a tua ajuda. E tu dizes, Levem-nos para longe daqui.” (A Febre, de Wallace Shawn.)
Por favor, não me entendam torto. Este A Febre é um texto político, com certeza, mas não como esses outros, aqueles outros, esses tais que sabiam a verdade toda, e a verdade logo com V grande, ó caneco, e não admitiam qualquer “senão”, nenhum “porém”, nem sequer um tremelicante “quê?”. Não, este A Febre não é nenhuma cassete desbobinada a partir do púlpito ou do palanque, aqui não há nada dessa pose de “dono da verdade” de tanto texto dito “político”. Aqui “político” não precisa de aspas, aqui “político” não é a tradução nacional-porreirista de “fraquito”, ou “ali entre o medíocre e o mediano”, ou chato-como-a-potassa-mas-aguentem-lá-em-nome-da-crença-ideológica-ou-clubística-cá-da-malta. Nesta magnífica peça – monólogo? conto? ensaio? discurso? – de Wallace Shawn, o político vem do próprio texto, não aparece imposto de fora, caído de pára-quedas, descido dos céus para nos vender uma qualquer metáfora-lição em palavras de pedra. Aqui o político surge das entrelinhas da vida; de uma vida na primeira pessoa que nos é mostrada mais do que explicada. Aqui o político implica-nos de imediato porque parte de um viver concreto, de uma história bem feita, isto é, feita verdade. 
A Febre? Respondo com perguntas: uma viagem à volta de uma sanita? A epopeia de um homem na casa de banho de um país pobre onde não se fala a nossa língua? A construção em caracol do mais impuro dos manifestos? A narrativa interior do mais tortuoso dos pedidos de perdão? Os trabalhos de um homem que, perante a descoberta do “outro”, cai finalmente em si? Um espantoso poema em prosa para uma brutal queda da linguagem? A novela tragicómica de um turista da miséria? Um teatro para olhar o mundo, as novas palavras proibidas, a “vida real”?
A Febre é um nó por desatar. Um punho fechado: um murro, um coração, um gesto político. Um texto que não se furta ao excesso, à contradição, à dúvida, ao conflito; uma voz que segue assim, aos trambolhões, claríssima, até ao extremo, para lá da margem, para lá da pergunta, até ao próprio limite da identidade. 
De um lado, os balões alegres de que todos gostamos, candelabros bonitos, embrulhos maravilhosamente complicados com delicadas jarras de porcelana dentro, caixas que dão suspirozinhos, bailados e óperas, peúgas difíceis de encontrar, amigos divertidos, enfim, a vida, a vida!, a vida que, sim, pois, deve ser festejada. E, do outro lado, a guerra, a tortura, fotografias de cadáveres, o cheiro esquisito das salas de estar dos pobres, a carne nojenta que parece aumentar no nosso prato, os rapazes maus do bairro mau, os países “em desenvolvimento”, a empregada da limpeza que nasceu para ser aquilo e nunca poderá ser mais que aquilo, o medo, o ódio, a loucura, o vómito. De um lado, Juana, a bela guerrilheira, a bela mártir, olhos brilhantes que aprendemos a admirar. E, do outro lado, o gelado descoberto no hotel obscenamente caro do pais revolucionário que visitámos por causa de uma tichârte, o gelado viciante e inesquecível, o gelado multicolor que nos há-de doer para sempre (mas nunca o diremos, não podemos dizê-lo nunca, é segredo, chh).
“...e portanto sim, precisamos de conforto, precisamos de consolo, precisamos de boa comida, precisamos de coisas boas para vestir, precisamos de belos quadros, filmes, peças de teatro, passeios no campo, garrafas de vinho.” (A Febre, de Wallace Shawn.) 
E, no entanto, aqui não há conforto. Não há, pelo menos, o conforto habitual, o consolo de sempre. Uma peça que não nos apanha pela “empatia” costumeira das ficções, antes por esta horrível “cumplicidade” no crime. No crime da injustiça, da desigualdade, da desesperança. No crime da não abolição da morte.
A certa altura, a propósito de marxismo e relações de produção, o protagonista d’A Febre dá o exemplo de um homem a abrir uma revista de mulheres nuas. Diz ele que, por trás do código que é o preço da revista, o que se passa é que o homem pagou para que a mulher tirasse a roupa e se sentisse desta ou daquela maneira perante a lente do fotógrafo; que nada daquilo aparece do vazio, que o homem ordenou e a mulher obedeceu, que cada “produto” contém a sua própria “história”.
A Febre faz isto: fura os códigos, revelando o que está por trás deles, não deixando nunca que nos sintamos apenas, e oh tão confortavelmente, “espectadores”. Não, aqui estamos dentro da “história”, não viemos do nada e não estamos no meio do nada, somos “actores”. E, portanto, em consequência, saindo daqui, não teremos de agir?

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