quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Sobre uma fotografia de Daniel Berehulak

Procuro coisas felizes mas só encontro coisas más e queimo-as. Tenho medo de já ter passado os olhos, as mãos, por uma coisa feliz e não a ter reconhecido. Tenho medo de ter perdido essa capacidade, com tudo o que aconteceu, tudo o que vi entretanto, tudo o que não consegui impedir de entrar nos meus sonhos. Dormir é um ato tão essencial e tão desprotegido, tão exposto. Quero encontrar uma coisa que me mostre de novo como sonhar de olhos abertos, dono de mim. Quero voltar a reconhecer o mundo. Depois do desastre, não sei o que mudou mais, se a terra, se o nosso coração. Em miúdo, há uns dias atrás, eu encontrava tudo o que queria deixando-me ir despreocupadamente. Era superpoderoso nesse sentido. Distraía-me e achava. O meu corpo alimentava-se dos céus, das cores das casas, do rio, de pessoas especiais, tão diferentes de mim, e guiava-me com as perguntas certas. Inesperava-me em qualquer lado. Agora, depois da catástrofe, depois de ter visto tanta morte e sofrimento pior que a morte, tanta injustiça, tanto sem-sentido, tanto, não vou dizer a palavra, não porque tenha medo mas porque não quero dar ao outro lado a força que um nome desmultiplicado pode ganhar por si próprio, depois ter visto tanta imagem sem profundidade, sem resgate, depois de ter visto tanto mal, nada em mim parece ainda disponível para as frescas perguntas de quando eu era miúdo. Isto é, há dois ou três dias, há uma ou duas noites, antes da destruição se abater sobre este mais pobre dos lugares. Calo-me, busco coisas más para queimar. Talvez o fogo. Talvez o fogo, sim, ao contrário das histórias que nos contaram desde sempre os antigos e os livros dos antigos, talvez o fogo, o fogo que plantamos como flores imateriais sobre a água negra da noite interminável, talvez o fogo seja a coisa feliz que busco, que buscamos, vem comigo.

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