Uma vitória do Benfica em Alvalade até faz a segunda-feira parecer um sábado. Não que tenha sido exactamente um passeio, que a expulsão de Sidnei ainda nos fez sofrer um bocadito. De qualquer modo, isso só aumentou a alegria dos finalmentes. Dois golos que foram um consolo, dois chutos argentinos que nos fizeram esquecer o sem-sentido de tanta história que há para aí.
É um dos grandes mistérios mundiais, a Argentina. É um país, claro, está nos mapas, nos livros, tem uma bandeira, etc, mas é também um profundo mistério - um mistério límpido e infinito. O lugar de Borges e Maradona. E também de Gardel e Piazzolla, e dessa música que é, ao mesmo tempo, emoção carregada e puro movimento. Essa Argentina inexplicável é que explica o belo resultado de anteontem. Poderíamos desbobinar a conversa das tácticas, estratégias, psicologias, etc, poderíamos armar-nos em cientistas e recitar números, percentagens, estatísticas, etc, que não chegaríamos nem perto do ponto. Como é que se mede a garra? Como é que se avalia o espírito? Como é que se tabela a mística? A verdade desta gloriosa vitória contra o Sporting está nessas antiquadas e irredutíveis palavras - garra! espírito! mística! - e nas chuteiras argentinas dos nossos craques.
Salvio é um jogador inesperado, originalíssimo, e, no futebol formatado de hoje, isso é muito-muito. Um extremo que marca golos, um estilista que sabe passar a bola, um repentista que aguenta a carga. Quando pega na bola, o campo aumenta porque os adversários não conseguem defini-lo - isto é, dar-lhe um fim. Olham-no com a estranheza de quem se pergunta “mas de que cromo é que este tipo saiu ao certo?” e, de repente, já é tarde. Já a bola canta lá dentro, embrulhada nas redes. Foi assim em Alvalade. Os olhos postos no Cardozo famoso, e afinal, quem leva a bola é Salvio. Um toque, dois, já está.
Mas a estrela de segunda-feira foi - cantem comigo: Nico, Nico, Nico... Gaitán, Gaitán! Jogou como um bailarino erudito, como um verdadeiro argentino. As doses certas de cabeça e coração, impulso e calma, letra e metáfora. Por isso, aquele golo não foi sorte nenhuma. Ou antes, sim, mas a sorte justa. A verdade é um mistério e aquela bola tinha de entrar. Tabelando num defesa adversário, soprada pelos deuses, fosse lá como fosse. Tinha de entrar. Não para a história acabar bem, mas, muito mais importante, para a história fazer sentido.
(no JN de hoje)
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