quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Fazer sentido

Uma vitória do Benfica em Alvalade até faz a segunda-feira parecer um sábado. Não que tenha sido exactamente um passeio, que a expulsão de Sidnei ainda nos fez sofrer um bocadito. De qualquer modo, isso só aumentou a alegria dos finalmentes. Dois golos que foram um consolo, dois chutos argentinos que nos fizeram esquecer o sem-sentido de tanta história que há para aí. 
É um dos grandes mistérios mundiais, a Argentina. É um país, claro, está nos mapas, nos livros, tem uma bandeira, etc, mas é também um profundo mistério - um mistério límpido e infinito. O lugar de Borges e Maradona. E também de Gardel e Piazzolla, e dessa música que é, ao mesmo tempo, emoção carregada e puro movimento. Essa Argentina inexplicável é que explica o belo resultado de anteontem. Poderíamos desbobinar a conversa das tácticas, estratégias, psicologias, etc, poderíamos armar-nos em cientistas e recitar números, percentagens, estatísticas, etc, que não chegaríamos nem perto do ponto. Como é que se mede a garra? Como é que se avalia o espírito? Como é que se tabela a mística? A verdade desta gloriosa vitória contra o Sporting está nessas antiquadas e irredutíveis palavras - garra! espírito! mística! - e nas chuteiras argentinas dos nossos craques. 
Salvio é um jogador inesperado, originalíssimo, e, no futebol formatado de hoje, isso é muito-muito. Um extremo que marca golos, um estilista que sabe passar a bola, um repentista que aguenta a carga. Quando pega na bola, o campo aumenta porque os adversários não conseguem defini-lo - isto é, dar-lhe um fim. Olham-no com a estranheza de quem se pergunta “mas de que cromo é que este tipo saiu ao certo?” e, de repente, já é tarde. Já a bola canta lá dentro, embrulhada nas redes. Foi assim em Alvalade. Os olhos postos no Cardozo famoso, e afinal, quem leva a bola é Salvio. Um toque, dois, já está. 
Mas a estrela de segunda-feira foi - cantem comigo: Nico, Nico, Nico... Gaitán, Gaitán! Jogou como um bailarino erudito, como um verdadeiro argentino. As doses certas de cabeça e coração, impulso e calma, letra e metáfora. Por isso, aquele golo não foi sorte nenhuma. Ou antes, sim, mas a sorte justa. A verdade é um mistério e aquela bola tinha de entrar. Tabelando num defesa adversário, soprada pelos deuses, fosse lá como fosse. Tinha de entrar. Não para a história acabar bem, mas, muito mais importante, para a história fazer sentido.
   
(no JN de hoje)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A gralha e a arte

Na última quarta-feira o Deus da Gralha pregou-me uma partida danada. Ao ler a minha crónica aqui, deparei-me com um texto sportinguista que, obviamente, não era meu. No dia seguinte a coisa foi corrigida e a crónica legítima saiu certinha. Mas o meu coração benfiquista ficou pouco menos que furiosíssimo, como devem imaginar. E, no entanto, passada uma semana, começo a perceber o desígnio por trás desse acidente gráfico. O Deus da Gralha queria que eu olhasse para o Sporting. É isso. Foi um sinal. Não é isso, afinal, a arte gráfica: a arte dos sinais? 
Não, não vou fazer pouco do momento dramático que o Sporting atravessa. Pelo contrário. O que venho aqui fazer, nestas modestas linhas de homenagem ao Deus da Gralha, é desejar as melhoras rápidas ao SCP. Filosoficamente, o Benfica é pura afirmação; não é contra coisa nenhuma, não é anti-nada. Mas, literariamente, digamos, a existência de um Sporting bem vivo faz parte do meu benfiquismo. Quero ganhar sempre ao Sporting, mas não quero olhar para o clube de Alvalade daqui a uns anos com o saudosismo paternalista com que, fatalmente, olhamos para o Belenenses ou para a Académica. Digo-o sem um grão de ironia: por favor, deitem a mão ao Sporting.
Mas falemos de bola concreta. Na Luz, contra o Vitória de Guimarães, houve de tudo. Arte, serenidade, lições de vida. Comecemos pelo fim: Sidnei dedicando aquele primeiro golo de cabeça - uma bola careca, bem penteadinha, colocada no único quadradinho possível - a Luisão, o mano velho da defensiva. Passemos pelo meio: Saviola conseguindo uma obra-prima de serenidade zen ao não desesperar perante a anulação escandalosa daquele golo mais limpo que um dia de céu azul no inverno de Ponte de Lima. E acabemos no começo: arte, futebol-arte! 
Só aquele toque de Pablito, recebendo - almofadando e apimentando - a bola longínqua, aérea, de Sidnei, só aquilo vale um prémio de ouro. Depois, basta olhar e chutar: tão difícil fazer assim simples. E o de Carlos Martins? Um artista português! Ajeita com o direito e, com o esquerdo, plim, inventa uma folha seca daquelas à antiga, daquelas que tornam anacrónico qualquer guardião, mesmo um craque elástico como esse Nilson Correia Júnior. Futebol-arte!
Contra o Sporting, sim, caros amigos, vamos respeitá-los ao máximo: pressão alta e pé no acelerador.

(no JN de hoje)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Cultura desfocada, país atrasado

Já se percebeu que a visão que este governo tem para a cultura é igual a zero. Mas o problema não é só o governo ou a ministra. O problema é o país, somos nós todos. Não preparamos futuro nenhum com este “deixa andar”, com esta triste “navegação à vista”. Não preparamos futuro nenhum com este paleio contabilístico, com estas vistas curtas, esta visão mercenária da sociedade e do mundo. Só com uma grande aposta na educação e na cultura é que poderemos ir para lá da historinha do “bom aluno/ mau aluno” para nos tornarmos, de corpo inteiro, aquilo que somos: europeus na Europa, portugueses na Terra.


Para assinalar os 25 anos de integração europeia, o Gabinete em Portugal do Parlamento Europeu organizou este livro (ed. Princípia) com textos e depoimentos de várias pessoas sobre diferentes áreas. Tive a honra de ser convidado e escrevi um Retrato desfocado: a cultura em Portugal nos anos europeus:

'...falta o mais importante: a generalização de um acesso qualificado aos “bens culturais”, a ideia do direito à cultura como um direito de cidadania, um direito social, um direito básico que vem com isto de “ser português” e “ser europeu”. Falta consolidar a visão de que uma justa democratização cultural não é – como não será noutros campos – nivelar por baixo, facilitar, menorizar ou, para usar a expressão paternalista habitual, tornar a arte “mais acessível”... No fundo, o que está por trás deste discurso que rotula a cultura paga com dinheiros públicos de “capricho de elites” é um preconceito ferozmente antidemocrático e uma leitura assustadoramente estática da sociedade: a ideia de que as “elites” serão sempre as “elites” e os “sem-parte” serão sempre os “sem parte” e, ponto final, não há nada a fazer.
Pelo contrário, o que temos de ambicionar, se queremos chegar a algum lado, ou se queremos, no mínimo, não perder o pé nestes velozes tempos “globais”, é criar condições para que todos, de Trás-Os-Montes a Lisboa, possamos ser “elites”. E, nesse sentido, sim, a cultura é o grande motor de arranque da sociedade. Se a globalização se parece muitas vezes com uma corrida de fundo que acelera o próprio tempo, então, não haja dúvidas, é a cultura a “lebre” que falta à sociedade portuguesa.'

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Portugal e Portugal

Hoje o JN meteu a pata na poça. No meu espaço de crónica, com o meu nome e fotografia, aparece um texto sportinguista que, obviamente, não escrevi. Percebo que é um erro "desses que acontecem". Mas percebam também que é um erro que dói fundo, na alma. Nunca mais disto, por favor!
O meu texto de hoje é este.


Argentina e Argentina

Antes do jogo de hoje à noite, falemos das mais recentes felicidades argentinas. No relvado do Bonfim, do lado direito, ainda longe da zona dos perigos convencionais, Saviola espreita o horizonte e toma a decisão. Sem parar, levanta a bola com o máximo de força para o lado contrário. Tanta força que acaba por rodar sobre si próprio como um daqueles bonecos de subbuteo que havia nos anos oitenta da nossa infância, nem vê o belo arco diagonal do passe que acaba de fazer. Quando os olhos voltam ao mesmo sítio, já a bola está a chegar à chuteira do miúdo. Que momento maravilhoso, Nico, que magnífico centésimo, que instante flamejante. 
Em vez de se pôr o problema de como receber a bola, em vez de pensar “dentro da caixinha”, em vez de se perder num qualquer clichê confortável, o craque número 20 do Glorioso pensa pela própria cabeça e espanta da melhor maneira. Receber a bola? Não, atacá-la, reencaminhá-la. Não deixa sequer que o esférico desça ao chão mortal. Abre os braços como que se preparando para voar e, com um simples toque - a chuteira esquerda esticada, apontando o caminho -, faz a história desenrolar-se para o golo. Palmas, palmas, caros amigos. Por favor, repitam comigo: Osvaldo Nicolás Fabián Gaitán. 
Mas o domingo em Setúbal ainda teve mais Argentina. Com três nomes apenas se anuncia a outra maravilha benfiquista no Bonfim: Franco Daniel Jara. Na repetição, até parece fácil. Uma tabela com o lateral Maximiliano, a bola devolvida pelo ar, um tudo-nada para trás. Um problema? Não, problema é não enfrentar os problemas com boa cara e melhor imaginação. Num movimento de dança que Fred Astaire, Mikhail Baryshnikov e Edson Arantes do Nascimento não desdenhariam, o argentino número 11 do Benfica sobe pela escadaria de ar que dá para o sonho e, o quê? como é que é possível?, chuta. Sem força a mais nem alma a menos, no ponto perfeito: a bola aconchegadinha nas redes, toda contente. Viva, iupi, uma ovação para o futebol-arte.
Belos golos, grandes momentos, sim. Mas, sem querer ser desmancha-prazeres: o Benfica não tem de jogar mais, ainda mais, muito mais?
Hoje à noite, a Argentina está do lado de lá, bem sei. Mas a questão permanece, no futebol e fora. Seremos capazes de juntar um verdadeiro jogo de equipa à alegria dos nossos craques? Acções concretas às belas palavras? A força transformadora do sonho ao “sangue, suor e lágrimas” dos tempos difíceis?


   

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Prosa lírica

Chamem-me bota-de-elástico, utópico, lírico, chamem-me pobre e mal agradecido, mas o facto é que não consigo compreender esta madrugadora saída de David Luiz. Do lado do jogador, acho sempre incompreensível que alguém saia do Benfica, ponto final. O Chelsea não é propriamente um clube recreativo de meio da tabela, bem sei, tem muito dinheiro e muito tempo de antena, blá, blá, blá. Mas, digam-me, como é que alguém pode jogar de águia ao peito quatro anos, uma semana, um minuto, e não perceber que Glorioso só há um, o SLB e mais nenhum? Pois, pois. Antiquado, lírico, não é? Peço desculpa. Não quero dar sermões a ninguém, calo já a má disposição. É que acabei de ler o raio da notícia... Lírico, tudo bem. Pobre, aceito. Agora, mal agradecido é que não. Boa sorte, David! Mostra a esses ingleses enevoados que até na zaga o futebol tem de ser alegria e alma. 
Mas há mais a dizer sobre esta triste saída às escuras. Se um miúdo que quer ver mundo tem sempre desculpa, quem repete erros crassos não pode passar sem o nosso “buuu...”. Do lado dos patrões do negócio, do lado de quem vendeu o defesa, a decisão é, usemos um eufemismo, indefensável. Se queremos ganhar competições, não podemos despachar craques sem ter substitutos à altura. Foi assim com as saídas de Ramires e Di María e vejam o que isso nos custou. Até pode ser que Sidnei puxe dos galões e se revele um portento, que Jardel construa uma personalidade benfiquista à prova de dúvida, pode ser. Mas, caros amigos, o Benfica não deve ficar refém de um reticente “pode ser”...
O Benfica não é isto. O Benfica é o Javi García parado no ar, à espera da primeira bola do recém-chegado Fernández, para cortar a fita da baliza do Desportivo das Aves. O Benfica é aquele olhar de raposa de Franco Daniel Jara antes de dar um delicadíssimo toque para o lado, como quem suspende a sílaba de uma frase assassina, e chutar para golo. O Benfica é a chuteira atenta de Nuno Gomes, engavetando mais uma bola no marcador. O Benfica não é um número, não são os milhões obscenos que as manchetes põem em grande e por extenso. O Benfica não é uma “marca” e não é, não pode ser, um entreposto entre o talento do Novo Mundo e os cifrões dos novos ricos. O Benfica é aquele golaço que o miúdo Menezes declamou no domingo: um movimento indestrutível, todo futuro e certeza, a subir, sempre a subir.

(no JN de hoje)