segunda-feira, 6 de junho de 2022
quarta-feira, 1 de junho de 2022
Calçada de Santo André, 79
O Alexandre gosta muito da ópera Nabucco. Um dia, decidiu ir vê-la a Verona. Pegou num dicionário e aprendeu: “Io voglio sapere”. Ligou para a Arena de Verona e disse “Io voglio sapere…”, mas não sabia mais: desligou. Viveu apagado 12 anos, a ouvir a Antena 1. Deitado, cheio de comprimidos, a pensar como é que ia dormir, como é que ia arranjar comprimidos para dormir, e a ouvir a Antena 1. Em miúdo, o João lia “O Poder Mental”. Aquilo expandia-lhe o raciocínio, mas depois veio o “boi”, que era como o pessoal de Angola chamava à erva. O irmão mais velho gostava muito dele e queria atar-lhe as mãos e os pés à cama até que lhe passasse o vício. Tinha orgulho nele, por ele fazer todos os trabalhos. Mas João nunca se aguentou num lugar. Nem com empregos nem com mulheres. Gosta é de tudo o que faça clorofila. Sabe os cheiros das plantas, na aldeia até lhe chamavam ancião. Aos 52 anos, amarrou um cabo ao pescoço, atirou-se pela janela e partiu um pé. O Alexandre fazia rádio-pirata na Rádio Amizade, com o programa Rádio Cartaz. Fugiam à polícia, e entrevistaram o Guilherme de Melo. Trabalhava à noite numa empresa de segurança e dormia de dia. Ganhava dinheiro, mas avariou os sonos. Passou a tomar comprimidos para dormir, e aos 40 anos teve um colapso, meteu-se ainda mais nos drunfos, no crack, na ganza. Passava de autocarro pelo Casal Ventoso, via as pessoas na rua, e pensava: não hei de morrer assim. Nunca se meteu na heroína. O Fernando bebe do pacote porque sente um vazio. O João diz que conhece esse vazio e que o preenche com espaços verdes. Para o Alexandre, a rua foi o melhor que lhe aconteceu: percebeu que pode ser invisível. O Fernando diz que é bom o GAT deixá-lo usar aquela morada. O sistema acha que as pessoas que dormem nas ruas de Lisboa não são de Lisboa e manda-as para os concelhos de origem. O Fernando diz que, se não fosse o GAT, continuava na rua. O Pedro viveu no mato, em Monsanto. Queria escavar um buraco e meter-se lá. Depois arranjou casa, e foi ele que ajudou o João quando este precisou de um lugar para ficar. O Fernando dormiu debaixo das arcadas, com outros. Se havia queixas, a Junta levava para lá uma máquina de lavar a rua, a ver se os enxotavam. O Alexandre trabalhava nos dias úteis e, ao fim de semana, deixava-se ir. O João também, até lhe chamavam o Freak Fim-de-Semana. Mas depois as coisas descontrolam-se. O Pedro diz que acharam cocaína nos túmulos dos egípcios. Que 3 continentes foram ao fundo. Que há uma cidade por baixo do Triângulo das Bermudas. O João diz que é um penedo feito de magnetite. Em miúdo, interessava-se por Da Vinci e fazia máquinas de água a ferver. Aos 14 anos, levava um camião Bedford para os Sete Moinhos. O Pedro anda a trabalhar nas marchas. O Fernando vai fazer uma formação em análise alimentar. O Alexandre gosta muito do Casablanca, principalmente do Bogart. Não gosta tanto da Bergman, acha que ela tem pouca expressão. Oh, diz o João, isso é por ser a preto e branco.
Jacinto — com Alexandre, João, Fernando, Pedro
(texto escrito na Leitura Furiosa, que é organizada em Lisboa pela Casa da Achada)