Acabámos o ensaio na Penha, o Ivo e a Anabela levaram o Luís de carro à estação das camionetas, e eu e a Paula descemos a pé a rua comicamente íngreme que, todos os dias, como que nos devolve das alturas da imaginação à vida real da cidade. Não sei como, a meio dessa rua sem nome, pusemo-nos a falar de mortos, mortes, morte. Por virmos do país do teatro, talvez, a conversa a partir dessa proibida palavra M não pareceu forçada, nervosa, nem triste. Uma palavra, outra, uma pergunta, outra; e aos poucos fomos encontrando maneira até de sorrir sem fugir do assunto. Despedimo-nos à porta do metro e eu desci as escadas para baixo da terra. Ao chegar à plataforma, vejo um homem caído na linha.
Do lado de lá, no sentido Arroios-Alameda, meio sentado ou a levantar-se, um homem de camisa azul. Imaginei que tivesse caído naquele momento. Do lado de lá da plataforma, chama-o outro homem, dizendo que o ajuda a subir, aproximando-se da beira para o puxar para cima. Mas o da camisa azul nem olha para ele. Levanta-se e põe-se a andar pela linha, em frente, na direção de onde virá o metro. O placard eletrónico diz que falta um minuto. Eu e outras pessoas dizemos-lhe para sair dali, mas o homem parece não ouvir ninguém, continua a andar em direção ao túnel. Retrospetivamente, uma imagem mítica: um mortal como nós avançando para o túnel esfíngico, indiferenciado, absoluto. Despe a camisa enquanto anda, como que a mostrar que está pronto. Ou como uma última pergunta? Uma provocação? Como um desafio? Oh o azul impossível daquela camisa. Um azul aberto, vivo, um azul de céu azul.
Na plataforma, pessoas a gritar, pessoas a descrever a cena ao telemóvel em tempo real, pessoas paralisadas a ver, a não querer ver, a ver. Éramos todos estranhos uns para os outros e de repente uma coisa tinha-nos juntado: aquele homem ia morrer. Ao meu lado, uma senhora grita, desesperada, “Porquê, porquê”. Pálida e com dificuldades de respiração, prestes a desmaiar. Um rapaz novo diz-lhe para ter calma, e ela continua, “Porquê, porquê”. Trinta segundos, dez segundos. O homem vai morrer, meu Deus. (Deus é uma palavra inventada para estas horas?) Felizmente, acontece o inverosímil. O metro para no túnel. Alguém terá conseguido comunicar com o maquinista, imagino. E o homem ali fica. De pé, de frente para os faróis acesos do metro, de tronco nu, de mãos atrás das costas. Não se mexe. Durante uma eternidade, não se mexe.
A morte de cada dia nos dai hoje. Escrevo aqui este momento terrível de um sábado de outubro para não me esquecer dele. Não por qualquer tipo de prazer mórbido, mas porque é verdade e me fez olhar com novos olhos para o nosso Henrique IV parte 3. Porque é a morte que nos deixa “dentro” dessa coisa da vida. Perdoem-me se começo a citar personagens assim a meio, sem aviso. O que diz realmente o Henrique da nossa peça é: “Enquanto traduzo, estou lá — estou aqui — estou mesmo dentro da coisa, sabes?” Mas, sim, trago para aqui este suicídio falhado porque acredito que ele pode iluminar a “tradução” que fizemos, da página para a cena. Resumindo: se não lembrarmos o azul que havia no azul dessa camisa largada, todo o azul desbotará. Afinal, talvez seja essa uma das tarefas do teatro, não? Dizer as coisas para ver as coisas? Atravessar a morte para a matar?
Neste nosso Henrique IV parte 3 não há a morte com M maiúsculo, mas há um fantasma com F de Falstaff. É aí que faço a ligação entre o que se passara e passaria na sala de ensaios da Penha e o que se passou e não passou na estação de metro de Arroios. Também no território desta nossa peça é um espírito antigo, uma figura que (já lá diz Miriam) parece “feita mais de palavras do que de carne”, quem vem concretizar o estar-aqui das personagens mortais, nossas contemporâneas. Um fantasma gordo opondo-se, como que por acidente, aos números magros da crise sempiterna a que chamamos “sistema”. Estar vivo parece um dado mas é um achado — Falstaff e Shakespeare sabem esse segredo. E nós, nestes dias que correm?
Agora percebo melhor a resistência dos encenadores a escrever sobre os espetáculos. O que se diz diz-se em cena (mal posso esperar para ver isto no TeCA com a contracena do público). E tentar explicá-lo talvez só aumente o ruído, com o risco de se reduzir a violência, a graça, do que os atores criam ao vivo. Mas, se calhar, posso dizer isto: esta é uma comédia que nasce de palavras difíceis e uma tragédia que redunda nos gestos mais prosaicos. Um espetáculo que, com o genial gordo de Shakespeare, quer rir a bandeiras despregadas. “Ora, homem, isto é gente mortal, é gente mortal.”
(texto escrito para o programa do espetáculo "Henrique IV parte 3", no TeCA)
Caro escritor - Aqui fica um breve registo da postagem que fiz no meu site onde poderá encontrar os vídeos que editei, um com a entrevista ao seu saudoso pai o outro o diálogo que tive em casa dos seus avós, em meados da década de oitenta - Francisco Lucas Pires –(Coimbra, 19 de Outubro de 1944 — Pombal, 22 de Maio de 1998) – “A política não é só poder!... A política é influência, é negociação! É a capacidade de obter as melhores decisões! É estar presente nos sítios exatos!... É intervir nas ocasiões decisivas!... E essa política tem-nos permitido bons resultados para Portugal no Parlamento Europeu” – E ainda o diálogo com os pais - Memórias dos meus dias na Rádio
ResponderExcluirEra excecionalmente culto mas à noite ao deitar na cama gostava de ler histórias aos quadradinhos “ – Por causa da politica, para entrar na Universidade, teve que assinar um papelinho!... Mais pormenores e outro vídeo em http://www.vida-e-tempos.com/2016/11/francisco-lucas-pires-1992-politica-nao.html
Professor, advogado e político português. - A vida académica, politica e pessoal de Lucas Pires foi brilhante, intensa mas breve: uma espécie de meteoro que ilumina o espaço e desaparece: - Nasceu em Coimbra, em 19 de Outubro de 1944 e faleceu, a 22 de Maio de 1998, aos 54 anos em Pombal - E, com certeza, com muito ainda para dar em prol dos ideais, que abraçou, ao seu país, tanto à vida académica, como à política, onde é lembrado como um referência inesquecível – Mesmo por queles que o tinham como opositor