Há um oficial bem penteado num calhamaço russo que, quando recebe a ordem de transferência para a frente de batalha, responde qualquer coisa como: “Irei — se não para a posteridade, pelo menos para já!" Foi neste estado de espírito que, há uns dias, me arrastei até Ponte de Lima em busca de quinze metros de corda de sisal. Mal pisei o granítico chão da mais antiga vila de Portugal, parei. Sim, estanquei boquiaberto, não é assim a expressão? Tive de parar para, metaforicamente, esfregar os olhos. Um estranho espanto não me deixava prosseguir, mantinha-me ali preso dentro de que pergunta, suspenso de mim próprio: estava tudo tão diferente.
Ponte de Lima nunca foi nenhuma Manhattan, não é propriamente famosa pelo seu bulício cosmopolita. Ainda assim, aquilo era demais. Não é que “a vila mais antiga do país” (como ensina a placa da autoestrada) parecesse velha, triste ou feia, mas estava paradíssima. Irreconhecível de tão quieta. Tão parada que quem ali chegava tinha também de parar e esfregar as metáforas em busca de explicação.
Claro que o verão desacelera os lugares e as levas de turistas fotografando à toa pedregulhos milenares também. Tanta fotografia faz dos lugares cenários, torna a vida bidimensional. Isso é um fenómeno conhecido, estudado, científico. Mas ali era outra coisa, era demais. O sol limiano não apareceu agora e, pelo menos, desde os romanos, ou desde os gregos, ou muito antes, que há turistas por estas partes. Aquilo era diferente. O que acontecia ali era ao mesmo tempo mais simples e mais complicado, mais trágico e mais banal. O que acontecia ali era a falta de notícias.
Lá fora, no mundo, um banco chamado Espírito Santo desmoronava-se, bombas caíam em Gaza, o presidente russo brincava às guerras mundiais, e ali, naquela concreta Ponte de Lima de julho, nada. Há pouco tempo — ontem — não havia vila mais velha ou mais nova totalmente imune às manchetes, ao ruído do tempo, à confusão mundana. Mesmo a desoras, com todas as bancas e tabernas fechadas, sempre havia um cartaz rasgado numa parede ou uma folha de jornal esvoaçando fellinianamente pelo claro-escuro da praça principal, sempre algum sinal de que o planeta é habitado, que o humano vive em glória, em tragédia, em busca de sentido. Hoje, ali, em pleno dia, não — nada.
A crise dos jornais e do jornalismo também dá nisto. Terras sem manchetes; lugares limpinhos como cartões-postal ou selos comemorativos do mais tristonho silêncio imbecil. Claro que o online é o futuro, mas talvez os quiosques pudessem imprimir edições horárias mais baratas; e talvez não seja muito caro levantar alguns painéis eletrónicos nas fachadas, esplanadas, nos telhados, para que as manchetes voltem a atravessar as nossas cidades e vilas, novas ou antigas. Não sei. Talvez fazer jornais melhores? É que, das praças sem notícias aos corações sem consciência, é só um tirito. Na praça de São João lá encontrei quem me vendesse, a quilo, os tais quinze metros de corda de sisal. Mas de que é que podíamos falar, eu e o vendedor, durante os longos parêntesis do negócio, se não havia notícias que dessem data e hora àqueles pedregulhos imemoriais?
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