domingo, 1 de janeiro de 2012

Espalhar o frio

Nos primeiros três dias a corrida foi difícil, mas a história era simples. Encontrar um ritmo, ver onde pôr os pés, aguentar, aguentar. No final, a visão do diospireiro como um troféu secreto, indizível, só para mim. No quarto dia, depois de ter lido The Runner de Don DeLillo, é que a história mudou. Não que o conto me tivesse perturbado excessivamente. O mundo cá fora é que, de repente, se tornara mais denso, mais misterioso, como se as coisas existissem agora para ser lidas; o mundo mais sábio. (Bonito esse título em português, O Corredor. Aquele que corre mas também o caminho que percorremos numa casa à noite, por exemplo, a tatear paredes à procura de uma luz.) Ao quarto dia, a corrida como um exercício do corpo inteiro, cabeça incluída.
O sino da igreja respondendo ao ladrar dos cães; o cheiro da erva molhada contra o azul limpo do céu; o cantar estúpido dos galos sobre os arbustos sem nome. Na casa branca do lado de lá da estrada, uma velha de negro espera não sei o quê no cimo das escadas, em frente à porta.
Quando dou a segunda volta, vejo-a bater de novo, truz-truz. Nada. A velha recolhe o braço, suspira, “Oh caralho...” Uma velha minhota totalmente derrotada.
O ar mais frio quando passo junto ao muro de pedra; a sombra de uma cabeça deslizando nas alfazemas, a personagem do homem que corre sofrendo sonhos esverdeados, acinzentados, violeta.
A. vem a descer para tratar de algum assunto prático relacionado com couves galegas. “A espalhar o frio?” pergunta-me.
“É isso”, digo, como se fosse preciso responder.
O som demasiado puro, digital, dir-se-ia, do canto dos pássaros; não os vejo, mas ouço-os à conversa de uma árvore para outra, ti-ti-ti-ti, estudando versos de sete, oito, quatro sílabas.
Nos cinco metros da última subida, perco uns cinco minutos de ar, mas acabo por chegar lá cima. Corro até ao tanque e regresso; olho para o relógio, paro. De bofes de fora, não é assim a expressão?, admiro o diospireiro na leira de baixo. A árvore nua carregada de bolas pequenas, pesadas; bolas de bilhar pintadas de cor de laranja; um símbolo grandioso contra todo o fim. Quando olho para a casa branca, a velha desapareceu.
Terá regressado pela berma da estrada, de mãos a abanar? Uma figura de preto contornando o terreno das tangerineiras, olhando sem interesse o cão dos vizinhos, passando demasiado devagar pelo cemitério. Não, não, que eu já li o The Runner. O que acontece é totalmente outra coisa. A esta hora a senhora senta-se na cozinha a beber uma sopa quente, pensando em batatas ou na iluminação que este ano o padre escolheu para a igreja ou no preço de uma viagem a França ou na riqueza que é ainda ter dentes para trincar uma batata que não se desfez ao lume, um bocado de cenoura mal cozida, o caule da couve, distraída da morte.

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